Relatório técnico e educativo – Medicina do Esporte
Introdução
O ligamento cruzado anterior (LCA) é uma estrutura chave na biomecânica do joelho, essencial para o controle da estabilidade anteroposterior e rotacional da articulação. Lesões do LCA são altamente prevalentes entre atletas, especialmente em esportes que envolvem desaceleração súbita, mudanças de direção, salto e aterrissagem.
Anatomia e Função do LCA
O LCA conecta o côndilo lateral do fêmur à área intercondilar anterior da tíbia. Suas principais funções são:
• Prevenir a translação anterior da tíbia sobre o fêmur
• Controlar movimentos rotacionais do joelho, especialmente durante pivôs
• Contribuir para a propriocepção articular
Composto por dois feixes principais:
• Anteromedial (AM): atua predominantemente na flexão
• Posterolateral (PL): atua na extensão e na rotação
Incidência e Epidemiologia
A incidência de lesões do LCA varia de 35 a 85 por 100.000 habitantes/ano, sendo mais comum em:
• Jovens entre 15 e 30 anos
• Atletas do sexo feminino (risco 2 a 8 vezes maior)
• Esportistas de futebol, handebol, basquete, esqui, snowboard e artes marciais
Fatores como laxidade ligamentar, ângulo do quadril (Q angle), atraso na ativação do glúteo médio, e alterações hormonais são considerados riscos adicionais, especialmente em mulheres.
Mecanismo de Trauma
Trauma sem contato (70–80% dos casos):
• Valgo forçado com rotação externa da tíbia
• Aterrissagem com joelho em extensão e pé fixo
• Pivô súbito com desaceleração
Trauma com contato:
• Impacto lateral sobre o joelho
• Hiperextensão direta
• Trauma direto posterior na tíbia
Classificação das Lesões do LCA
As lesões do LCA podem ser classificadas conforme:
a) Grau da lesão:
• Grau I – Estiramento leve, sem instabilidade
• Grau II – Ruptura parcial com certo grau de instabilidade
• Grau III – Ruptura total, geralmente associada à instabilidade evidente
b) Tipo de ruptura:
• Ruptura do feixe anteromedial
• Ruptura do feixe posterolateral
• Ruptura completa dos dois feixes
• Avulsão da inserção tibial ou femoral
c) Lesões combinadas:
• LCA + menisco medial
• LCA + menisco lateral
• LCA + ligamentos colaterais
• LCA + ligamento cruzado posterior (LCP)
• LCA + canto posterolateral
Associação com lesões meniscais
Cerca de 50 a 70% das lesões de LCA estão associadas a lesões meniscais, especialmente o menisco medial, devido à sua menor mobilidade e função estabilizadora secundária.
• Lesões do menisco lateral são mais comuns no trauma agudo (rotacional).
• Lesões do menisco medial tendem a surgir com o tempo, pela instabilidade crônica.
As lesões meniscais associadas aumentam significativamente o risco de:
• Artrose precoce
• Deterioração da cartilagem femorotibial
• Dor persistente e perda de função
Diagnóstico
a) Avaliação clínica:
• Estalo audível no momento do trauma
• Edema rápido (hemartrose)
• Sensação de falseio ou insegurança
• Dor localizada
• Redução da amplitude de movimento
b) Testes físicos:
• Teste de Lachman (mais sensível)
• Gaveta anterior
• Pivot Shift Test (especificidade elevada para instabilidade rotacional)
c) Exames de imagem:
• Ressonância magnética (padrão-ouro para avaliação do LCA e estruturas associadas)
• Radiografias (descartar fraturas por avulsão, osteocondrite)
Tratamento
a) Conservador (não cirúrgico):
Indicado para:
• Pacientes sedentários ou de baixa demanda física
• Ausência de instabilidade rotacional
• Rupturas parciais bem controladas
Inclui:
• Fortalecimento muscular (principalmente isquiotibiais e quadríceps)
• Treinamento proprioceptivo
• Reeducação postural e neuromuscular
b) Cirúrgico: Reconstrução do LCA
Indicações:
• Instabilidade funcional evidente
• Atletas ou pacientes ativos
• Lesões associadas (menisco, cartilagem, outros ligamentos)
• Falha do tratamento conservador
Técnicas:
• Autógenos (tendão patelar, semitendíneo/grácil, quadríceps)
• Alógenos (banco de tecidos, indicado em casos específicos)
• Técnicas anatômicas (single-bundle ou double-bundle)
• Guiagem por artroscopia com fixações suspensivas ou parafusos interferenciais
Consequências da não reconstrução
Em pacientes com instabilidade persistente, a falta de cirurgia pode resultar em:
• Falseios recorrentes
• Lesões degenerativas dos meniscos
• Condropatia femorotibial
• Artrose precoce
• Restrição à prática esportiva
• Queda da performance funcional
Pós-operatório e Reabilitação
A reabilitação é essencial e segue protocolos individualizados. Etapas principais:
• Fase 1 (0–2 semanas): controle da dor, mobilidade precoce, ativação do quadríceps
• Fase 2 (2–6 semanas): ganho de amplitude, marcha sem muletas, início de fortalecimento leve
• Fase 3 (6–12 semanas): fortalecimento progressivo, treino de equilíbrio
• Fase 4 (3–6 meses): treino funcional, simulação de atividades esportivas
• Fase 5 (6–12 meses): retorno gradual ao esporte
Critérios para retorno ao esporte incluem:
• Ausência de dor/edema
• Força muscular simétrica
• Testes funcionais satisfatórios
• Avaliação psicológica (confiança no joelho)
Prognóstico
• Taxa de retorno ao esporte: 65–90% após 9–12 meses
• Em atletas de alto nível, o retorno ao mesmo desempenho ocorre em 55–75% dos casos
• Reconstrução com técnica adequada + reabilitação supervisionada = maior chance de retorno com segurança
• Lesões associadas (menisco e cartilagem) pioram o prognóstico a longo prazo
Considerações Finais
Lesões do LCA representam um dos principais desafios da medicina do esporte. A abordagem deve ser individualizada, com diagnóstico preciso, decisão terapêutica baseada na demanda funcional do paciente e uma reabilitação rigorosa. Em casos de associação com lesões meniscais ou de cartilagem, a atenção deve ser redobrada para evitar danos articulares permanentes.